18 de janeiro de 2017

A Pequena História da Dona Mãe-Galinha

   Na fresca aurora de um dia primaveril, a Quinta do Monte estava envolta por um aroma balsâmico, a flores pingadas pelo orvalho, a terra húmida e a amanitas acabados de brotar. Os primeiros raios de sol, vindos das altas serras a nascente, penetravam, timidamente, pelos interstícios das afusadas folhas das coníferas. Via-se, naqueles panos de luz ainda morna, que surgiam entre as árvores, o fugaz vapor que saía da terra atapetada de musgos e pequenas ervas.
   Tudo começara a despertar: as plantas, os cogumelos, os piscos-de-peito-ruivo, os melros, os ouriços-cacheiros, os bichos-de-conta e as marias-café. Mas, o primeiro ser a acordar foi uma pequena garniza pardacenta, muito bonita e redondinha, com as patas calçadas de penas e um olhar ternurento, quase maternal.

   Essa garniza, destemida e determinada, não obstante o seu porte, era a Dona Mãe-Galinha, conhecida na Quinta do Monte pelos melhores motivos, mas invejada por muitos. E, naquela manhã de Primavera, decidiu que queria criar uma ninhada, o que requeria encontrar o sítio ideal para depositar os seus ovos, incubá-los e protegê-los, comer e beber, sem os deixar arrefecer e, claro, cuidar e educar os pintos que eclodissem.

   Com a ideia de voltar a ser mãe completamente cimentada na sua mente, a Dona Mãe-Galinha planou do seu poleiro até ao chão e foi tomar o pequeno-almoço, na boa companhia de si mesma, pois os outros galináceos ainda bocejavam e ela, muito frangamente - como é habitual dizer na sua linguagem -, não apreciava a forma coscuvilheira, conservadora e rasteira das suas congéneres.
   Depenicou uns grãos de milho, depois umas ervitas, engoliu dois ou três morangos-silvestres e, mesmo antes de capturar uma minhoca distraída, foi cumprimentada pela Dona Clara, a mais imperativa das cinco galinhas da Quinta do Monte.

   - Bom dia, Dona Mãe-Galinha. - disse, com desdém.
   - Bom dia, Dona Clara! - respondeu simpaticamente, mesmo notando a arrogância da outra.
   - E então, o que faz aqui tão cedo? Costuma levantar-se ao mesmo tempo que nós. - esgravatou o solo, sem sequer a olhar.
   - Aqui, há umas semanas atrás, surgiu-se-me uma vontade incontornável de voltar a ser mãe. Falei com o meu Garnijozé e, claro, ele não se opôs. E, como a manhã de hoje começou tão esplendorosa, decidi pôr patas à obra!
   - Que estupidez, Dona Mãe-Galinha! Isso de estar sentada em cima de ovos, durante vinte e um dias seguidos, é coisa para galinhas servis, sem distinção...
   - Então, suponho que a sua mãe seja uma dessas galinhas. - respingou a Dona Mãe-Galinha, interrompendo-a.
   - Que disparate! - engasgou-se. - Eu sou uma galinha-poedeira de alta estirpe.
   - Pois. E os meus filhos serão mães e pais de "alta estirpe" também, com bons modos e sem ilusões. Tenha um bom dia, Dona Clara. - despediu-se, virando-lhe costas e seguindo de bico arrebitado.

   Depois do amargo diálogo com a Dona Clara, a pequena garniza dirigiu-se até às restantes quatro galinhas-poedeiras, que depenicavam um trigo da véspera e cacarejavam sobre a vida alheia.
   - Bom dia, minhas senhoras!
   - Bom dia, Dona Mãe-Galinha! - responderam em uníssono.
   - Não querendo criar transtorno a nenhuma de vocês, perguntava se me ajudariam a encontrar o sítio ideal para eu fazer um ninho.
   - Claro! Claro que ajudamos!
   Nisto, chega a Dona Clara, incomodadíssima, furiosa, de penas arrebitadas.
   - Não! Não podem ajudar. Nenhuma! Vá, minhas senhoras. Toca a comer! Temos o dever de pôr ovos, não de nos metermos em trabalhos que não nos dizem respeito. - começou a encaminhar as suas quatro congéneres para outro lado.
   - Mas para falarem do que não vos diz respeito... - sussurrou a Dona Mãe-Galinha, já as outras iam longe. - Devem é estar invejosas porque toda a gente sabe que, quando alguém cria uma ninhada, é presenteada com papas carolas feitas a preceito pelo Pedro. - conversava para si.

   A pobre garniza ficou triste, como seria de esperar. No entanto, não desistiu e dirigiu-se até ao pequeno lago, onde costumavam estar as tartarugas aquáticas e os patos-reais. Solicitou a atenção dos mergulhadores emplumados, mas a barulheira das chapinhadas e o frenesim das patas grasnantes quase desencorajou a pequena Dona Mãe-Galinha. Mas, dada a sua natureza ousada e persistente, aproximou-se, cacarejando, do lago.
   - Bom dia, meus senhores! Desculpem intrometer-me, mas gostaria de perguntar às Sras Donas patas se me ajudariam a encontrar um bom sítio para fazer um ninho.
   - Nós já estamos ocupadas a fazer os nossos. - diziam, enquanto os dois patos-reais machos observavam e ouviam, calados. - Talvez seja melhor pedir ajuda a alguém... da sua... do seu género.
   - Muito bem. Grata, em todo o caso. - agradeceu, cabisbaixa.

   Naquela altura, temi que a Dona Mãe-Galinha cedesse à desistência de tão valorosa decisão, por isso, decidi intrometer-me e fui ter com ela. Ofereci-lhe uma caixinha de madeira, descoberta mas muito bonita, com a parte da frente baixa e as beiras altas, para que se aconchegasse melhor. Enchi a caixa com serrim e aconselhei à Dona Mãe-Galinha que a colocasse debaixo de uma grande hera, que crescia entre um muro alto de pedra e uma grande cerejeira - um local limpo, seco e discreto.
   Depois do ninho e do agrado instalados, a pequena garniza lá se sentou e, durante três dias seguidos, com uma interrupção diária apenas para comer, pôs três lindos ovos, branquinhos e suaves, pareciam de porcelana. Após o último ovo, encheu bem o papo de comida e esticou as patas felpudas por uma última vez, até, claro, à eclosão dos seus pintos.

   Devo admitir que fiquei de coração cheio pelo facto da Dona Mãe-Galinha ter, finalmente, aquilo por que tanto esperava. Por conseguinte, ausentei-me da Quinta do Monte por uns dias, para só regressar no dia da eclosão.

   Passados quinze dias, a Dona Mãe-Galinha sentiu-se terrivelmente indisposta, pois havia comido demais da última vez que o fez e, provavelmente, estava com dificuldades na digestão. Lembrou-se, portanto, de depenicar umas folhas de hortelã-pimenta, que a ajudariam a aliviar a indisposição. No entanto, para seu pesar, as hortelãs cresciam numa leira acima da dela, o que requeria uma viagem com o risco dos seus ovos arrefecerem.
   Quando a Dona Clara passou pelo seu ninho, como o tinha vindo a fazer desde que a pequena garniza se sentou nele para incubar os ovos, a Dona Mãe-Galinha pediu-lhe, gentilmente, que se sentasse, apenas por uns minutos, em cima dos seus ovos para que pudesse fazer aquilo que planeara.
   Escusado será dizer que a Dona Clara declinou o pedido arrogantemente, e retirou-se com altivez.
   A desafortunada garniza não teve outro remédio senão ir suportando as dores, mas ia, também, tentando a sua sorte, pedindo, sempre que passava uma ave fêmea, a mesma coisa que pedira à Dona Clara. Todos os pedidos eram recusados, simpaticamente ou não. Mas isso não interessava à Dona Mãe-Galinha, a única que, em toda a Quinta do Monte, ajudava a criar a prole dos outros. Pois, nem por consideração, ninguém lhe ofereceu apoio.
 
   Determinada, como já sabemos que é, a Dona Mãe-Galinha lembrou-se de cobrir os seus três preciosos ovinhos com mais serrim e umas folhas secas que se estendiam nas imediações do ninho, para que conservassem, o quanto pudessem, a temperatura das frágeis esferas enquanto estava ausente. Correu, correu e correu! Correu o mais que pôde, de asas abertas e peito para a frente.
   Quando chegou à leira das hortelãs, depenicou algumas e arrancou outras, para, assim, levá-las consigo até ao ninho, não fosse a indisposição voltar. Afinal, para o que ela precisava, não tinha ninguém.

   Ao chegar ao ninho, receosa, encostou delicadamente o seu bico em cada ovo para sentir a temperatura. Suspirou. Mas, felizmente, suspirou de alívio, pois ainda se encontravam quentinhos.
   Apressou-se a sentar-se em cima deles e, durante os dias que restavam até aos pintos nascerem, lá permaneceu, aconchegada e satisfeita.

   No dia da eclosão, a Dona Mãe-Galinha estava radiante. A sua exultação era tal que parecia estar a ser mãe pela primeira vez. Creio que isso acontece sempre, sendo a mãe de que espécie for.
   Os filhotes, frágeis, malhadinhos, tremelicantes e ternurentos, já saídos das cascas, procuravam o carinho e o conforto da sua mãe. E disso, a Dona Mãe-Galinha tinha para dar e vender!
   Todas as aves da Quinta do Monte juntaram-se em volta da feliz garniza, mas a uma distância que denunciava algum peso nas suas consciências. De qualquer forma, a sua reunião era por interesse: todos eles sabiam que eu apareceria, a qualquer momento, com papas carolas para a Dona Mãe-Galinha e, claro, todos acharam que, independentemente dos seus actos, iriam receber algo da dedicada mãe.

   O certo é que, quando me aproximei da Dona Mãe-Galinha e dos seus adoráveis filhotes para a congratular e agradecer-lhe por ter sido uma forte criadora de vida, ninguém teve coragem de lhe pedir, sequer, um nico da farta dose de papas carolas que eu lhe oferecera.
   Ah! Como eu gostava que vissem a Dona Mãe-Galinha e os seus lindos pintos a deleitarem-se com aquelas cheirosas papas, enquanto todos os outros ficaram a olhar, de moelas vazias, o quão feliz estava aquela pequena grande família.

                   
Texto e Ilustração por Pedro Pinho e Suárez (Gallus gallus domesticus, garniza).


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