4 de janeiro de 2017

A Pequena História de Coleóptero Palma

Se já conhecessem a história do pequeno guarda-rios e da velha tartaruga que fumava cachimbo, esta, provavelmente, faria mais sentido. No entanto, acredito que nada aqui escrito, ou descrito, associado à primeira história, comprometerá a compreensão da verdadeira mensagem.


   Eram quatro e meia da tarde, num dia de Inverno. As noites ainda se queriam longas e, mesmo sendo cedo, o sol já se escondia atrás da folhagem perene dos cedros, na Quinta do Monte, um recanto muito, mas mesmo muito longe da Floresta do Palacete, embora com algumas semelhanças.
   Eu havia chegado há pouco da barbearia, mas fiz questão em cumprir o meu prometido: levar um prato de barro à Dona Clara, a galinha cor de galão, a mais imperativa das cinco.

   - Não gosto nada destas modernices! Um prato de porcelana branca, pintado, ainda por cima? O milho escorrega e eu assim não quero! E olha que não sou a única a queixar-me, Pedro. Queremos um prato de barro. - pediu a Dona Clara.

   Bem, escusado será dizer que indulgenciei o requerimento. Afinal, a Dona Clara e as outras quatro galinhas faziam-nos o favor de, todos os dias, pôr um ovo, cada uma, para consumo alheio.
   Antes de lhes entregar o grande prato de barro, fiz papas carolas, a comida preferida de qualquer galináceo: num balde, misturei carolo com vinho doce, algumas couves em juliana e uma mancheia de ervas campestres. As galinhas adoraram!

  Depois de sentir o dever cumprido, desci o caminho de paralelos, passei pela ramada de kiwis, pela grande sequóia - já semi-nua - e, antes de entrar em casa, ouvi um estranho ruído vindo da velha palmeira.
   - As de Vila Chã eram mais macias... Arre! - ouvia-se do topo da palmeira, seguido de um "rg, rg, rg...!", de quem serra madeira.
   - Ei! - vociferei. - Quem está aí?
   - Hmmm... Ninguém! Não se empate comigo, vá à sua vida.
   - Isto é propriedade privada, sabia? Apresente-se, imediatamente!
 
   Um breve silêncio instalou-se. Mas, logo a seguir, algumas das folhas da palmeira farfalharam e, de lá, surgiu, voando na minha direcção, o mais peculiar ser que já havia visto por aquelas bandas. Era um grande escaravelho, avermelhado e com um longo probóscide, que usava um chapéu esverdeado e uma malinha de rodas. Claro que, na altura, levava a bagagem junto ao corpo, mas, quando aterrou, esticou o cano metálico que lhe permitia puxá-la para onde quisesse.

   - Chamo-me Coleóptero Palma. Desculpe ter invadido a sua quinta, mas fi-lo com um bom propósito.
   - E qual é esse bom propósito, Sr. Coleóptero Palma?
   - Bem... Sabe, Sr...? Não interessa. - sussurrou. - Eu vim de muito longe. Das vastas terras tropicais, vegetadas por palmeiras dos mais interessantes tipos.
   Enquanto conversávamos, a velha palmeira desintegrava-se, do topo ao toco, qual vela gigante sob a acção do calor da chama.
   - Desculpe, Sr. Palma, mas o que é que está realmente aqui a fazer? Lamento dizer-lhe, mas não o tomo por um ser próprio destas bandas.
   - E acha que a sua palmeira é? - apontou para ela, olhou-a e corrigiu-se. - Era?

   Admito que, na altura, fiquei sem resposta. O Sr. Coleóptero Palma deixou-me, efectivamente, desarmado com a sua conversa. Mas, antes de se ter ido embora, abriu a sua malinha de rodas e, dela, retirou quatro sementes, as quais escondera entre os diminutos dedos de cada pata.
   - Escolha uma. - disse-me.
   Apontei para a sua última mão direita. Ele abriu-a e, na minha mão, deixou cair uma bolota.
   - Agora, Sr...
   - Pedro. Apenas Pedro.
   - Agora, Pedro. Retira os despojos da velha palmeira morta, vai ao monte colher terra fértil e, no lugar dela, semeia essa bolota. Dela, surgirá um magnífico carvalho, "próprio destas bandas".

   Percebi de imediato as intenções do viajante alado. Agradeci, curvando-me suavemente e, antes que ele levantasse voo, ousei perguntar-lhe:
   - Mas porquê, Sr. Palma?
   O grande escaravelho aproximou-se, fez-me estender a minha outra mão, e nela, tiradas da sua mala, poisou mais três sementes: um pinhão, uma castanha e uma pevide de medronho. Sorriu, abriu as asas e desapareceu.
   Nisto, a Dona Clara chegou e, preocupadíssima, disse-me que lhe haviam contado que uma horrível praga de escaravelhos havia invadido os territórios temperados, matando todas as palmeiras que encontravam. Vendo a palmeira completamente desintegrada, propôs matar todo e qualquer "escaravelho-das-palmeiras" que se encontrasse na quinta. Mas, claro, ainda nenhum Coleóptero Palma lhe havia mostrado a perspectiva correcta dos acontecimentos.
   Cá para mim, aquela não será a última vez que o grande escaravelho visita a Quinta do Monte. E, cá para nós, o Sr. Coleóptero Palma ainda há-de dar outra lição a alguém sobre quem cá está, ou sobre quem merece cá estar.

 
Texto e Ilustração por Pedro Pinho e Suárez (Rhynchophorus ferrugineus, escaravelho-vermelho/das-palmeiras). 


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