27 de setembro de 2016

Contos de Prach'a - As Pálpebras de Buddha

Num dia ameno e undiflavo, no longínquo Nepal de há dois mil e quinhentos anos atrás, um elefante-indiano, de pele lisa e nívea, com uma flor-de-lótus delicadamente suportada na ponta da sua imensa tromba, dirigiu-se à então rainha da época e do local.
Com uma graciosa dança, que contrariava fisicamente aquilo que um paquiderme pode, de facto, fazer, o elefante seduziu a Rainha e, ao fundir-se no seu corpo com a flor-de-lótus, engravidou-a, mostrando-lhe, a partir do seu ventre, as mais belas premonições para o futuro do seu bebé.
A Rainha, tão em paz com o que via e sentia, tão tranquila e, no entanto, tão alheia à verdade dos acontecimentos, adormeceu debaixo de uma árvore oriental que baloiçava, suavemente, os seus galhos ao sabor da balsâmica brisa.

Diz uma lenda, precisamente sobre esta lenda, que o fantasioso acontecimento entre o elefante e a Rainha não passou de um sonho da mesma, mas que, ao acordar, ela sentiu um peculiar tremor no seu ventre.
Nove meses depois, a Rainha deu à luz a Siddhartha Gautama, futuro príncipe e primeiro Buddha, ou simplesmente Buda, o único Supremo da sua própria religião não cosmológica.

Passados alguns anos, Buddha, O Iluminado, renunciou ao trono e decidiu iniciar uma longa e árdua peregrinação, que lhe viria a trazer imensos perigos, desconfortos quase insuportável, pobreza e, em contra-partida, depois de décadas de intempéries, uma percepção aprofundadíssima sobre o mundo e sobre si mesmo.

Não obstante, antes de conseguir alcançar esse despertar espiritual que lhe valeu uma doutrina própria, Buddha fez a promessa, e não sei bem a quem, mas provavelmente à sua exclusiva essência, de, enquanto viajava pela China, meditar durante nove meses sem qualquer tipo de interrupções. Porém, como seria biologicamente previsível para qualquer ser humano, Buddha colapsou pela falta de horas de sono depois de alguns dias, pois meditar nunca significou dormir.
Ao acordar, o sofrido peregrino revoltou-se por não ter conseguido cumprir a sua promessa e, num acto de frustração, colheu dois seixos esverdeados angulosos que encontrou no solo do seu caminho e cortou as suas próprias pálpebras.
Com os olhos abertos para nunca mais os fechar, Buddha atirou, numa atitude de repúdio, as pálpebras para o solo e, como que em jeito de vingança, pontapeou o terreno, tangenciando-as e cobrindo-as de detritos terrosos.

Ao virar as costas para continuar o seu percurso, ouviu um tímido crepitar vindo de debaixo e voltou-se: as suas pálpebras começaram a produzir raízes, que se aprofundavam paulatinamente terra adentro, ganharam raminhos, que engrossaram para galhos e que, depois, deram origem a robustos troncos. As pálpebras fusiformes, que se tornaram verdes, multiplicaram-se por toda a ramagem e adquiriram veios dispostos numa posição precisa, que as ligaram ao grande corpo vegetal e as metamorfosearam para folhas.

Buddha terá ficado extasiado, perplexo, atordoado, no mínimo! Se não fosse por já não ter pálpebras, diria, até, de olhos arregalados! - mas já não se justifica.

Sem explicação aparente, Buddha, depois de ter contemplado durante horas aquele arbusto arbóreo, ousou colher algumas folhas e mascou-as. Surpreso com o agradável sabor e com o efeito energético e revigorante, reparou que a sua fadiga havia desaparecido completamente. Havia, pois, surgido a planta do chá!
E é bastante tentador imaginarmos o elefante-indiano, de pele lisa e nívea, surgir por detrás do arbusto arbóreo e, consigo, levar o peregrino às costas e rebentos de chá na sua tromba para, pelo caminho, irem plantando-os por toda a China.

Este é o conto, ou talvez "lenda" seja mais apropriado, que explica a origem da Camellia sinensis, a planta do chá, enquanto espécie. No entanto, mesmo se, de facto, vivêssemos num mundo que se compadecesse com este tipo de "magias", como seria possível conciliar o facto da planta do chá ter sido criada por Buddha há dois mil e quinhentos anos, mas o Imperador chinês Shen Nung já a ter descoberto, por acidente, dizem, há mais de quatro mil anos atrás?
É natural que estes testemunhos não passam de fantasias, metáforas brilhantemente elaboradas e respeitadas pelas culturas que as criaram, mas as suas beleza e genuinidade, desde logo as do conteúdo, são absolutamente inegáveis.

No próximo Contos de Prach'a, apresentarei uma versão mais científica sobre o surgir da planta do chá, a qual, espero, não perderá, por isso, a sua essência virtualmente fantástica, no mais lato sentido da palavra.
           

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