22 de setembro de 2016

Contos de Prach'a - A Descoberta

Há mais de quatro mil anos, a China ancestral foi imperada por Shen Nung, conhecido e reconhecido como o Imperador Vermelho. Patrono da Medicina e Farmacologia chinesas, costumava vaguear pelos seus magnificentes jardins reais, conspicuamente enroupado com as suas librés da mais alta qualidade, e procurava plantas para as estudar. No seu típico estilo hirto e sereno de caminhar, ora com as mãos cruzadas atrás das costas, ora com elas resguardadas nas mangas do senhoril manto, Shen Nung analisava o tegumento das folhas de determinadas plantas, saboreava certas estruturas vegetais que considerava dignas para o efeito e meditava sobre o odor das mais belas flores.

Por sofrer de uma incontrolável vontade de beber água, provavelmente pela sobrecarga substancial dos componentes botânicos que continuamente ingeria, os seus servidores atarefavam-se, frequentemente, em recolher água da mais fresca e límpida das nascentes, fervê-la e aplacar a sede de Sua Majestade Imperial sempre que necessário. 
Shen Nung exigia veementemente que a água que bebia fosse fervida, receoso de adoecer por algum tipo de contaminação. Aliás, como bom governador que era, e por isso idolatrado por todo o povo chinês, decretou um edictal que cimentava exactamente a prática de ferver a água antes de utilizá-la, uma vez que, na altura, o império sucumbia a epidemias. 

Depois de, provavelmente, ter visto, revisto, estudado e analisado todas as plantas dos seus vastos jardins, Shen Nung planeou uma viagem, prudentemente escoltado, por toda a comarca que lhe pertencia. Encontrou exemplares botânicos iguais aos que possuía, outros semelhantes e alguns, para si, completamente desconhecidos. 

A viagem, de várias semanas, por florestas mormacentas e montanhas íngremes e geladas, acabou por esgotar o Imperador. 

Num dia particularmente quente, onde o sol fazia a sua testa chover suor, Shen Nung, depois de horas a estudar plantas sob condições climatéricas ferventes, sentiu-se exausto, prestes a colapsar. Procurou, pois, a primeira sombra que encontrou, um velho arbusto arbóreo, e sentou-se debaixo da protecção da sua humilde copa. Rapidamente, exigiu aos seus servidores água para beber. 
Enquanto a água fervia, num caldeirão de cerâmica escura, Shen Nung contemplava as belas folhas verdes, brilhantes e semi-serradas do velho arbusto. Vislumbrou as delicadas flores brancas que se-lhe alteavam e, ao inalar o seu subtil perfume, sorriu e fechou os olhos, recostando-se ao tronco. 
Distraídos com uma conversa que só a eles lhes dizia respeito, muito embora não o devessem fazer na presença do Imperador sonolento, os servidores não repararam que algumas folhas do velho arbusto arbóreo se soltaram dos galhos e, quais borboletas esmeralda, precipitaram-se graciosamente para dentro do caldeirão. 

Depois de ter recuperado alguma energia, Shen Nung ordenou que lhe servissem água. 
Os servidores voltaram às posturas dignas do seu cargo e, não reparando no incidente das folhas caídas, visto que o caldeirão era de cerâmica escura, serviram, numa taça, também ela feita no mesmo material, aquela água. 

Ao aproximar a taça dos lábios, Shen Nung sentiu um maravilhoso e complexo perfume adocicado. Perplexo com o fenómeno, arriscou e bebeu a água perfumada. Sentiu uma sensação floral no palato, depois uma ligeira adstringência na garganta e, ao sentir-se revigorado e alegre à medida que bebia, vislumbrou, no fundo da taça, uma folha igual a qualquer outra folha do velho arbusto arbóreo que o abrigava do sol. Esse arbusto, mais tarde baptizado como Camellia sinensis, é a planta do chá.

Dizem que Shen Nung ficou de tal maneira aficionado pela infusão acidental, que continuou a bebê-la até ao resto da sua vida e incutiu, no seu povo, que viria a desenvolver os conhecimentos sobre a planta e a bebida, o gosto por chá.  

Talvez a história não terá sido, realmente, exactamente como eu a vos contei - afinal de contas, "quem conta um conto, acrescenta um ponto" -, mas o Imperador Shen Nung, indubitavelmente, descobriu, de facto e por acidente, o chá como bebida que é e que, agora, de tanta complexidade científica e cultural é responsável. 

           

2 comentários:

  1. A verdade, exposta com muito saber, gosto, sensibilidade, dedicação, amizade, gosto da partilha e imaginação à mistura... dão cá um 'chá' daqueles que não cansa ler e se espera por mais.. parece que até a boca sente o saborzinho da chá.
    Obrigada pelas partilhas!
    Bjinhos

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    1. Minha querida Amiga,
      Quem mais senão a Hermínia para me deixar aqui tão bonita e incentivante mensagem. Muito grato pelas palavras!
      Apareça sempre que possa, sim?
      Muito obrigado.
      Beijinhos com saudade.

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